Continua ... parte 2
CACHOEIRA
CACHOEIRA
Os acontecimentos de Mateus começam na Cachoeira natal. O movimento dos terreiros e das igrejas católicas constituiu seu fundamento musical, que primeiro o levou às aulas no concerto escolar e, depois, às primeiras apresentações por trocados. “No Recôncavo, somos filhos do canto e da dança”, ele diz, num segundo encontro, no Largo de Santo Antônio Além do Carmo, local escolhido pelo próprio Mateus “por espelhar Cachoeira”.
Filho mais novo de uma família de 15 irmãos, esteve sempre atento às conversas, habilidade para sempre validada quando pescou que um certo conjunto que executava boleros, inspirados no Trio Irakitan, procurava integrante; fez teste. A entrada de Mateus em Os Tincoãs desencadeou a mudança já pensada por Heraldo e Dadinho. Saíram os romances de origem cubana, chegaram os sambas de roda. A identidade trouxe shows, mas também afastou as gravadoras. “Os selos não compreendiam o que fazíamos”.
A inevitável mudança para o Rio em busca de estúdio, em
1969, só se justificaria quatro anos depois, numa apresentação no programa
Amigo da Madrugada, na Rádio Globo, do jornalista e produtor Adelson Alves,
àquela altura responsável por lançar Clara Nunes. Houve chuva forte, seguida
por problemas no microfone e um erro na escalação das atrações, que incluiu mais
nomes do que tempo. Houve, por fim, três minutos para a trinca expor Sabiá Roxa, que seria uma das faixas
fortes do primeiro LP.
“Lembro de ficar paralisado com a união das três vozes:
iam na mesma direção, desenhavam algo inédito”, recorda Alves, condutor do
grupo até a gravadora Odeon. “Era o caminho para as pessoas entenderem que a
música oriunda da cultura negra não tinha apenas os exotismos do ritmo, mas um
perfil harmônico”.
As críticas sobre o trabalho percorreram o caminho. Uma
delas, publicada em fevereiro de 1974, no jornal O Globo, alude ao “único grupo
no País que conseguiu traduzir nossas tradições negras através de canções de
imensa beleza plástica”.
Mateus exibe um riso aflito frente aos adjetivos,
sobretudo aos que colocam no lugar de mentor ideológico. Diz que é só limpar a
vista para compreender o processo. “Estávamos na esteira de um Brasil desejoso
por usar um figurino seu. O que fizemos, cedo ou trade, seria feito”.
CORDEIRO
Muitas das canções do trio falam de dor e fé. Cenas da
senzala, que remontam a diáspora, tingem, sobretudo, os discos posteriores, Africanto (1975) e Os Tincoãs (1977), esse com as faixas
Cordeiro de Nanã e Atabaque Chora – “quero contar um sofrimento que eu passei
sem razão”, diz uma; “meu atabaque vendo o meu pranto rolar, também se pôs a
chorar”, responde a outra.
Esse calundu profundo, como pela contiguidade. “Quem não
veio naqueles navios?”, pergunta Thalma de Freitas, que regravou Cordeiro de
Nanã em seu EP de 2004. “Quando adolescente, eu vivia com uma fita K-7 com essa
música. Cordeiro é uma canção metafísica”, ela diz. O trabalho rendeu ainda o
videocast Compacto (2010), em que
Thalma canta ao lado de Matheus. “Lembro que conversamos, sobretudo. É
prazeroso ouvi-lo e aprender”.
A Fala de Mateus tem, de fato, um tom professoral. Sem
assertivas, no entanto, pega reticências e vírgulas, longos vãos. Profere como
quem busca algo. Muito desse aspecto está em O Milagre de Candeal (2004),
documentário de Fernando Trueba sobre o projeto social de Carlinhos Brown.
Matheus, que deveria executar apenas uma canção na fita, tem papel de cicerone:
apresenta Salvador.
“Notei que ele aglutinava gente em torno de suas
histórias, em especial sobre a África”, diz Trueba, referindo-se ao momento em
que decidiu alterar o roteiro para ganhar um guia. “Ninguém se esforça mais
para compreender a vastidão do continente africano do seu Mateus”.
CANTO
Ao olhar as fachadas coloridas do Largo de Santo Antônio,
Mateus põe uma lágrima na garganta que, na ponta de seu discurso vagaroso, encontra
lastro: a arquitetura tão própria de sua região exibe também Heraldo e Dadinho
– o primeiro, morto em 1976, e o segundo, em 2002, data final de Os Tincoãs.
“Não era só cantar certo, mas cantar com irmandade. É o outro saber como você
respira, como emite a nota, quando arrefece ou quando aquece. Nós tínhamos um
parentesco vocal”.
As paredes, por outro lado, sugerem os 19 anos (de 1983 a
2002) que ele passou em Luanda, em Angola, ao lado de Dadinho, em um hiato
criativo que não culminou com a morte do parceiro, mas com um pedido do
próprio: que Mateus continuasse a erguer o canto. “Assim tenho feito, talvez
não com a velocidade do mundo, mas com a que meu tempo e o tempo de Deus
permitem”, ele diz, despedindo-se para sacar da garganta uma cantiga sobre
mares e trovões, negros e Brasil, e jogar no ar sua missão-arte.
Por: Mu!to A Tarde
Texto Eron Rezende (eron.rezende@grupoatarde.com.br)
e Foto Fernando Vivas (fvivas@grupoatarde.com.br)
Nenhum comentário:
Postar um comentário