O Poeta Negro
A voz é uma orquestra. Ele disse, quase para si,
suficiente para lotar o espaço. Silenciou o estúdio. Porque pouco ia dar aquela
discussão sobre notas musicais se a canção não girasse no básico. “Há maneiras
sérias de não dizer nada, mas só a voz da música é a verdadeira”. E ergueu o
olhar, para entoar o seu canto.
A voz de Mateus Aleluia, 68, é retinta como a sua pele.
Tem gravidade de terra ressequida pelo sol – cenário impreciso, mas sempre
próximo. “Voz de quem sabe”, diz o maestro Ubiratan Marques, arranjador,
naqueles dias de gravação. “Mas arranjar o que, se estava tudo ali, claro como
céu claro?”. É que seu Mateus, como todos o tratam, misto de reverência e
saudação, habituou-se desde cedo a fazer sua própria companhia; prescinde dos sons
de fora, modulando as cordas vocais, como eco do músico que é intumescido pelo
verbo.
“Gosto quando tem gente tocando, mas penso que algo
sobra; minha voz é minha forma, compreendo assim”. Lição que passa à frente
desde Deixa a gira girar (1974), disco gênese do grupo Os Tincoãs, formado com
Heraldo e Dadinho. A canção que dá nome ao trabalho traz tudo: violão e
atabaque feito moldura leve para versos que rezam deuses e costumes da África,
três vozes que pontilham o Atlântico para ligar territórios.
A capacidade de traduzir os verbos do candomblé em música
popular, efeito marcado nas composições do grupo, já esteve em regravações de
João Gilberto (com participação de Caetano e Gil), Martinho da Vila, Margareth
Menezes, Carlinhos Brown, Mariene de Castro...
No primeiro encontro com MUITO, em seu apartamento, no Rio Vermelho, Mateus volta-se pouco
ao passado. Não há aspereza na atitude, mas a postura do homem que não quer
falar do seu ofício como algo consumido. Na sala, há pilhas de pastas coloridas
com letras já escritas (“olhando para elas, tenho a sensação de que as ideias
não se esgotarão”), máscaras polinésias (“adoro monstros imaginários, mas fico
apavorado com monstros reais”), discos de Debussy, Mozart, Chopin (“música
clássica é aula”). Há, oscilando entre seus dedos, o convite ao presente, seu
primeiro álbum solo, Cinco Sentidos (2010), que ainda lhe ocupa as madrugadas.
“Fico atraído por essa coisa misteriosa que é a gravação
sonora. Há uma beleza no estúdio semelhante ao milagre da gestação”, diz, sobre
os três anos de preparação do trabalho. “Mas não consigo ver o filho pronto.
Esse CD é um passo”.
A incompletude, costumeira na fala de Mateus, vem de sua
ideia de rascunho, de que é possível trabalhar por toda a vida numa única
música sem tê-la de forma completa. Por isso, pôs-se a revisar o repertório de
Os Tincoãs e a resgatar registros inéditos como quem busca um “a ver”
diferente. Colocou 11 canções em Cinco Sentidos, deixou outras tantas de fora,
material suficiente para novos álbuns. “Mas seu Mateus caminha sem produto,
como se a brincadeira fosse montar e remontar os quebra-cabeças” lembra
Ubiratan.
E eis, então, porque uma pergunta sobre o lançamento de
um trabalho posterior a Cinco Sentidos soa tão pertinente e insensata. Porque
da mesma forma que o novo é intrínseco ao processo, ele põe ruído no lento
avanço simultâneo de palavras e seus sons, cujo ponto final jamais pingará no
horizonte. Depois de feita, no entanto, a pergunta origina outra, essa de
Mateus, retórica. “Existe algo mais forte do que o turbilhão dos
acontecimentos? Eu não conheço. Por isso, me permito escorregar para dentro
deles”.
continua...
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