Palmares

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quinta-feira, 10 de abril de 2014

Um Terreiro a cada Esquina.

As margens do Rio Joanes, em terras que hoje pertencem ao município de Lauro Freitas, gritos e sangue de negros marcaram o início das lutas contra a escravidão e a intolerância religiosa no Brasil.
Durante uma tentativa de destruição dos engenhos da região, em 28 de fevereiro de 1814, cerca de 50 escravos mulçumanos foram mortos por tropas do governo e outros seis foram publicamente enforcados e decapitados na Praça da Piedade, em Salvador.
O massacre, lembrado com lástima pelo historiador baiano Gildásio Freitas, é um marco de resistência da cultura afrodescendente. Hoje, quase 200 anos após o “Levante do Rio Joanes”, dados oficiais revelam que crenças herdadas de africanos escravizados se consolidam progressivamente e moldam os costumes locais.
Segundo o Mapeamento Sociocultural e Étnico do Município, desenvolvido este ano e ainda não divulgado oficialmente, Lauro de Freitas se destaca nacionalmente como a região brasileira com a maior concentração de terreiros de candomblé por quilômetro quadrado.
O levantamento, sistematizado pela Secretaria municipal de Cultura e Turismo (Secult) e pela Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (Fenacab), revela a existência de 417 terreiros de candomblé cadastrados na cidade, que tem uma proporção espacial de 59 km².
Deste total, 203 foram devidamente mapeados desde o início de 2013. Eles estão distribuídos pelos bairros de Itinga (77), Areia Branca (44), Centro (41), Portão (31) e Caji (10). Dentre eles, 35 já foram visitados até agosto deste ano, e tiveram as características esmiuçadas para a composição do mapeamento.
Foram identificadas quatro nações tradicionais, segmentadas conforme o dialeto, a liturgia e a procedência dos escravos de origem e das divindades por eles cultuadas. Ao todo, são 22 terreiros da nação Ketu (Norte da África / República do Benin), nove da nação Angola (Congo, Angola e Moçambique), dois da Ijexá (Nigéria) e dois de Umbanda (toda a África).
O estudo ainda mostra que três destes terreiros já estão tombados: São Jorge Filho da Goméia, fundado há 60 anos pela Mameto (Ialorixá) Altanira Maria Conceição Souza, conhecida como Mãe Mirinha de Portão; Ilé Asé Opó Angaju, criado por Balbino Daniel de Paula, primeiro filho-de-orixá do sexo masculino, em 1972; e o Ilé Asé Opó Ajagunã, liderado pelo babalorixá Aristides Mascarenhas, conhecido como Pai Ari.
Segundo Mascarenhas, o terreiro que lidera exerce função social por meio da Fundação Ajagunã, que atende a mais de 800 pessoas, entre crianças e adultos, ofertando serviços como creche, reforço escolar, palestras pedagógicas e oficinas de corte e costura.

Independente

O coordenador municipal da Fenacab, Jadilson Lopez, conta que o mapeamento dos terreiros de candomblé surgiu após anos de profundas pesquisas relacionadas à força do povo de santo em Lauro de Freitas.
Desde 2002, a entidade tem trabalhado para ter um levantamento independente e detalhado da região, que não seja vinculado às pesquisas feitas em território soteropolitano. Lopez afirma que o número de terreiros legalizados é apenas um registro oficial de uma quantificação que pode ser bem maior, “já que existem diversos domicílios que abrigam cultos do povo de santo”.
“O levantamento vem pra mostrar a nossa força e, sobretudo, as nossas necessidades. Além de combater a intolerância religiosa, precisamos garantir dignidade às pessoas que frequentam estes terreiros, inclusive, no que diz respeito à oferta de rede de esgoto. Hoje, temos uma grande preocupação com a poluição dos lençóis freáticos. Por isso, brigamos por um projeto que garanta a devida instalação de banheiros nestes espaços”, diz Lopez.

Cultura e identidade

De acordo com a secretária municipal de Cultura e Turismo, Márcia Tude, as informações obtidas até o momento compõem o que ela prefere chamar de “pré-mapeamento”, já que ainda não foram detalhadas as especificidades de todas as nações apontadas no levantamento.
Dentre as características identificadas por meio de mais de 790 entrevistas, Márcia destaca a descoberta de que município possui a maior concentração de terreiros por quilômetro quadrado do País; e dá ênfase à identificação de inúmeros dialetos praticados nestes espaços, que acabam remodelando a própria linguagem local.
“Essas evidências revelam que a cultura afrodescendente é muito forte. E é a força desta cultura que deve impulsionar o seu reconhecimento e valorização”, afirma a secretária.
De acordo com o historiador Gildásio Freitas, a cultura afrodescendente, por meio de amplos costumes e manifestações, está intimamente relacionada à história de Lauro de Freitas.
“Há uma forte ligação, assim como também há nas cidades que ficam no entorno. Vale lembrar que Salvador foi capital do Brasil por 214 anos e que, nessa época, aqui se concentrava grande parte da riqueza do País. Logo, havia também maior presença de negros”, considera.
Esta presença, complementa o historiador, reflete hoje na cultura local. “Temos diversos elementos que comprovam a herança da cultura afrodescendente, como o candomblé, a capoeira e a culinária. Esta influência foi se misturando às outras, como a dos portugueses e indígenas, e resultou nesta miscigenação que temos hoje”, conclui.

Mobilização Política

Mais de 85% da população de Lauro de Freitas é afrodescendente. Seguindo uma lamentável proporcionalidade, o município concentra o terceiro maior índice de mortes entre jovens negros de 14 a 29 anos, no Brasil.
A partir destes dados, a secretária Márcia Tude destaca a necessidade imediata de elaboração de políticas públicas transversais – envolvendo todas as secretarias de governo –, que possam promover a igualdade racial e corroborar com o fim da intolerância religiosa.
Nacionalmente, ela destaca a recente criação do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas, lançado este ano. O plano pretende justamente promover ações transversais entre as secretarias e ministérios para promover o respeito e o reconhecimento da cultura afrodescendente.
“Temos no município o patrimônio material e imaterial. De material temos pouca coisa: uma igreja secular, além de belezas naturais. A força da nossa cultura está no patrimônio imaterial, que é a baiana de acarajé que respeita a sua tradição e veste a sua indumentária; é a cultura que resiste nos terreiros por meio de manifestações como dança e culinária. Um sinal vermelho se acende para nos atentarmos a estas riquezas”, alerta.
Do mesmo modo, o diretor do Departamento de Promoção da Igualdade Racial (Dpir), Cláudio Reis, reitera a necessidade de comprometimento de todas as secretarias com a valorização da cultural afrodescendente.
“Eu creio que temos, neste momento, uma oportunidade única de promover esta discussão. É uma questão de acessibilidade governamental. O Depir existe desde 2005 e, até então, não foi realizada uma política efetiva de inserção”, critica Reis. Uma medida prevista para janeiro de 2014 deve fortalecer o trabalho do Depir. O órgão, vinculado à Secretaria de Assistência Social, Igualdade Racial e Cidadania, será transformado em superintendência, ganhando maior força política.


Intolerância

O fortalecimento das políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial deve ajudar a combater o preconceito que envolve as religiões de matrizes africanas. Segundo Cláudio Reis, as queixas de agressões e injúria são recorrentes.
No último mês de abril, por exemplo, o babalorixá Anderson Argolo, conhecido como pai Anderson de Oxalá, disse ter sido abordado de forma truculenta por policiais militares. Líder do terreiro Obatalandê, ele foi seguido por uma viatura policial ao deixar o estacionamento de um mercado, em Lauro de Freitas.
Ao ser parado, o babalorixá informou ter passado por uma cirurgia recente e que, por isso, pedia cautela na abordagem. Mesmo assim, teve o rosto jogado contra o capô do veículo.
Ele, que estava acompanhando de dois filhos de santo, ainda lembra que teve uma arma encostada no rosto quando respondeu ao policial que tinha um nome, não um vulgo – termo usado pelo militar ao perguntar o nome do babalorixá.
“Não tenho palavras para descrever o que senti e o que estou sentindo nesse momento. Nunca passei por tamanho constrangimento. Vi nos olhos das pessoas simples, dos comerciantes que me conheciam, a revolta e o medo com aqueles que, em tese, estão ali para nos defender”, disse em carta aberta, divulgada pelo Facebook.
Dias após a denúncia, o secretário da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Almiro Sena, pediu desculpas ao pai de santo, em nome do Governo do Estado.
Fonte:
http://olarevista.com.br/site/um-terreiro-em-cada-esquina/

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